Crime ou Pecado?


Era uma manhã de novembro como tantas outras, com o sol filtrando-se pelas persianas, mas o ar carregava um peso diferente. O rádio, que eu deixara ligado por hábito, cuspia manchetes como confetes de um carnaval chuvoso: “STF mantém prisão de Bolsonaro por unanimidade”. Vinte e sete anos de sentença, por tentativa de golpe, crimes de organização armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito. O ex-presidente, outrora capitão de promessas, agora réu em uma trama que o Supremo descrevia como conspiração para subverter a ordem. Eu desliguei o aparelho, mas as palavras ecoavam: conspiração. Não atos consumados, mas planos sussurrados em reuniões, mensagens cifradas, omissões calculadas. E ali, na quietude do café esfriando, veio a reflexão inevitável – a linha tênue entre o crime, que o Código Penal mede em execuções e tentativas, e o pecado, que a doutrina da Igreja julga nos recessos da alma.

Lembro-me de uma aula de Direito Penal, há anos, quando o professor, um jesuíta aposentado com toga de sobressalente, traçava paralelos entre a lei e o catecismo. “O Código não pune o pensamento”, dizia ele, batendo o giz no quadro. “Atos preparatórios? Impunidade relativa, salvo exceções como o tráfico de entorpecentes. Tentativa? Sim, se o agente inicia a execução e é impedido por circunstâncias alheias. Mas o mero conluio, o ‘e se’ conspirado em voz baixa? Isso é domínio da moral, não da pena.” Naquele tempo, ríamos, imaginando juízes como confessores involuntários. Hoje, assistindo às transmissões do julgamento – aquelas sessões televisionadas onde togas negras se debruçam sobre minuta de decretos nunca assinados –, pergunto-me se não cruzamos essa fronteira.

As notícias pipocavam como orações apressadas. Em setembro, a Primeira Turma do STF, por quatro votos a um, condenara Jair Messias Bolsonaro a 27 anos e três meses, regime inicial fechado. Crimes graves: tentativa de golpe, sim, mas ancorados em atos que, para muitos juristas, mal saíam do papelão da preparação. Reuniões com generais relutantes, rascunhos de estado de sítio, silêncios cúmplices ante os atos de 8 de janeiro. Nada de tanques nas ruas, nada de fuzis erguidos em praça pública. Era, como diria o Código, o iter criminis travado no início, sem o exaurimento que o torna punível em plenitude. Mas o Supremo, em sua sabedoria colegiada, viu além: viu a intenção, o veneno no coração. E aí, sutilmente, o tribunal se transmuta em tribunal eclesiástico. Pois quem pune o pensamento senão os que detêm as chaves do céu e do inferno?

Penso na doutrina católica, que eu devorava na juventude em missas de domingo. O pecado mortal não exige o ato consumado; basta a deliberação plena da vontade, o consentimento ao mal em palavra, omissão ou desejo. “Pensamentos impuros, calúnias sussurradas, o não-fazer o bem quando se pode” – eis as constrições da confissão, as penitências impostas em absolvições condicionais. No banco da praça o padre absolve ou condena com base no invisível; no plenário do STF, os ministros, herdeiros de uma tradição inquisitorial que o Brasil tentou sepultar em 1988, parecem fazer o mesmo. As transmissões ao vivo, com seus closes em rostos tensos e pilhas de autos, evocam mais um ritual de expiação que um debate jurídico. “Ele planejou”, diz o relator, e o voto seguinte ecoa: “A omissão é cumplicidade”. Onde está o consumado iter? Onde a tentativa inequívoca? Em vez disso, uma narrativa de pecados capitais: soberba no poder, ira contra o eleito, gula por mandatos eternos.

No dia 24 de novembro, o prazo para embargos infringentes expirou sem que a defesa de Bolsonaro apresentasse novos recursos. A prisão preventiva, mantida por unanimidade, selava o destino: cela na Superintendência da PF, longe dos holofotes de Copacabana. Horas antes, flagrado em manobra para burlar a tornozeleira eletrônica – paranoia, diria ele, alucinação sob pressão –, o réu fora algemado não só por fuga, mas por uma teia de suspeitas que o Supremo tecera com fios de moralidade. Internacionalmente, o eco era de divisão: a BBC falava em “conspiração para golpe que dividirá o Brasil”, a CNN em risco de fuga para evitar os 27 anos. No X, antigo Twitter, as vozes se bifurcavam como pecados veniais e mortais: uns bradavam “justiça à democracia!”, outros, “perseguição inquisitorial!”. Mas, no fundo, todos confessavam o mesmo: o julgamento transcendia o artigo 14 do Código Penal, mergulhava no artigo primeiro do Decálogo – não terás outros deuses além da ordem estabelecida.

E se, no fim das contas, essa sentença for menos uma vitória do Direito que uma penitência coletiva? Juízes como sumos pontífices, impondo flagelações simbólicas por heresias políticas. Bolsonaro, o messias laico de seus fiéis, agora penitente em cela fria, expiando não o tanque que não rolou, mas o sonho que ousou sonhar. O crime, seco e mensurável, pede provas de execução; o pecado, ubíquo, basta o sussurro. No Brasil de 2025, com o Supremo como novo confessionário, pergunto: quem absolverá os absolventes? Eu termino o café, ligo o rádio de novo. As manchetes continuam, mas o silêncio entre elas é o mais eloquente – o de uma nação confessando seus crimes e pecados, sem saber onde um acaba e o outro começa.

Celso Brisotti, advogado

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