“Tal doença mata muito mais”
A OMS estima que a gripe espanhola tenha matado cerca de 30 milhões de pessoas em seus 2 anos de epidemia.Em 2017, com todos os avanços da medicina, por ano morrem aproximadamente 18 milhões de pessoas no mundo de doenças cardíacas — 36 milhões em dois anos.
Você não deixa de comer bacon porque 36 milhões de pessoas morrem a cada 2 anos de doenças cardíacas, mas com certeza teria medo de andar na rua no auge da gripe espanhola. Talvez ficasse em casa de quarentena, comendo carnes salgadas cheias de sal e gordura, estocadas pra durar pelo tempo necessário pra evitar a gripe espanhola.
É errado comparar duas doenças em termos de letalidade e usar isso pra justificar sua “tranquilidade” com uma delas, ou dizer que uma delas está gerando pânico demais.
A preocupação vem, primeiramente, da incerteza. Apenas epidemias e pandemias geram incerteza. Não existe, hoje, uma outra doença causando pandemia, então não há com o que comparar hoje.
A gripe sazonal é uma certeza: ela vai chegar no inverno, a vacina vai ser distribuída, uma taxa da população praticamente constante vai ser infectada e uma proporção delas vai morrer — cerca de 0,05%. Com base nos dados das gripes dos anos anteriores, é possível estimar quantas camas de hospital são necessárias pra lidar com o surto que vai ainda começar. E essa quantidade de camas é bastante baixa.
A dengue é uma certeza: apesar de haver formas de reduzir em muito seus casos, sabemos que ela vai começar no verão, ter seu pico, e diminuir com a redução das temperaturas, porque esse é o ciclo do mosquito. Sabemos quais são as áreas mais afetadas, sabemos modos de prevenção, sabemos modos de redução de casos, sabemos, mais ou menos, quantos infectados vão ter e quantos deles vão precisar de atendimento hospitalar. Os hospitais sabem diagnosticar no mesmo dia e sabem tratar sem problemas. Por tudo isso, a dengue tem uma mortalidade extremamente baixa (cerca de 0.04%). E há casos de pessoas que pegaram dengue e coronavírus em outros países. Então temos aí 1.5 milhões de pessoas (valor do ano passado) que podem pegar dengue e estarão mais suceptíveis a complicações e aumento de letalidade pelo coronavírus.
O sarampo tem vacina. Se o sarampo ainda mata, é por irresponsabilidade, não porque é uma incerteza.
Uma epidemia ou pandemia é, por definição, uma incerteza: não sabemos ao certo qual é sua taxa de mortalidade, não sabemos ao certo a taxa de contágio, não sabemos tratar eficientemente, não sabemos (no começo dela) quais são os grupos de risco, não sabemos se o clima afeta o contágio ou não, não sabemos rotas de transmissão, não sabemos como nos precaver, não sabemos se vai ser algo tranquilo (como a gripe suína) ou algo que tem um impacto enorme na economia, não sabemos quando acaba, quando acontece o pico da doença, não sabemos se vai se espalhar em todos os países, não sabemos diagnosticar rápido o suficiente.
“Não é muito surto pra pouca coisa?”
Qualquer pandemia gera um alto nível de preocupação e a única resposta sã pra qualquer pandemia é tomar todas as medidas necessárias para contê-la. Lá na frente vamos ver se ela tem potencial de alto impacto ou não. Foi assim com a gripe suína. A OMS sofreu duras críticas por ter agido com excesso de cautela com a gripe suína, que acabou sendo menos letal que a gripe sazonal. Mas a gripe suína, ou H1N1, também é a cepa que causou a gripe espanhola, portanto até saber se essa variante seria altamente letal ou não, a OMS teve que considerar que a letalidade da H1N1 seria extremamente alta e agir conforme o protocolo. Porque se ela tivesse sido e a OMS tivesse esperado pra ver, poderíamos ver o cenário da gripe espanhola se repetir.
Então a alta preocupação pelo COVID19 é totalmente justificada: até sabermos como ele vai afetar o mundo, é preciso considerar que seu impacto será alto e agir conforme.
Porém já temos várias dicas de como o COVID19 vai afetar o mundo. E, se não agirmos conforme, pode ser um impacto muito alto mesmo.
“A letalidade é muito baixa e só está matando pessoas já fracas ou muito idosas, não tem que se preocupar.”
Tirando o fato que essa justificativa tem uma falta de empatia absurda (cêis não tem mãe e pai não, não conhecem ninguém com hipertensão e diabetes?), o COVID19 não é problemático por ser altamente letal.
Inclusive, doenças muito letais são contidas mais facilmente, porque a maioria dos casos é diagnosticado antes da pessoa transmitir a várias outras.
O COVID19, até onde vimos, é problemático porque seu maior alvo não é a gente. É o sistema de saúde.
E um parêntese: a letalidade dele não é baixa. 2% parece pouco, mas a OMS estima que a taxa de mortalidade por caso da gripe espanhola foi 3%.
Então, ao invés de olhar pra “2%” (ou mesmo as estimativas mais otimistas de 0,5%), o número mais relevante do COVID19 é os 20% de taxas de internação, sendo 5% em UTI.
A maior parte dos jornais tranquiliza a população dizendo que 80% das pessoas não terá problema nenhum pra lidar com a doença. O ministério da saúde disse que se o cenário de Wuhan se repetir na cidade de São Paulo, com cerca de 50 mil casos, é perfeitamente administrável.
Pois vamos pensar: 50 mil casos, com 20% de internação, significa 10 mil leitos de hospital.
Ao todo, na cidade de São Paulo há aproximadamente 30 mil leitos totais (entre públicos e privados) e, no ESTADO (não achei o dado da cidade) há 5400 leitos de UTI entre públicos e privados. Porém, o dado é que aproximadamente 50% dos leitos estão nas capitais.
Se 5% precisa de UTI, e 15% precisa de leito comum, num total de 20% precisando de internação (e assumindo que iguais parcelas de pessoas com plano de saúde e sem plano de saúde estarão doentes), 7500 vagas normais seriam necessárias no decorrer de um mês a um mês e meio do total de 25 mil existentes (porém não tenho dados de quantas estão disponíveis), e 2500 estariam ocupando metade dos leitos de UTI de todo o Estado e muito provavelmente 100% de todos os leitos da cidade.
Quantas vagas livres para hospital e leito de UTI temos HOJE em São Paulo? Será que temos mesmo livres 50% das vagas do Estado? Não há como tirar um paciente que já está na UTI pra dar lugar a outro com coronavírus.
Vale ressaltar também que o Estado de São Paulo é o Estado com o maior número de leitos do país. O segundo lugar, Minas Gerais, tem metade disso.
Só 10% dos municípios brasileiros têm leitos de UTI.
Então o cenário que o Ministro da Saúde chamou de administrável é: usar 100% dos leitos de UTI da cidade de São Paulo, incluindo público e privado, e quase 30% da capacidade hospitalar total, numa cidade onde há regiões que a espera para atendimento com clínico geral chega a 70 dias.
E os demais Estados do país estão em situação ainda pior. O nordeste só conta com 5% do total de leitos de UTI do país. O Sudeste tem 50% do total.
Não sei o que ele entende por administrável.
Lembrando que 50 mil casos na cidade de Wuhan (vamos considerar esse valor, apesar de ter sido maior) foi resultado de uma quarentena sem precedentes, com pessoas proibidas de sair de casa desde o dia 23 de Janeiro, cidade fechada, comércio, fábricas, restaurantes, turismo, tudo completamente parado sob pena de prisão, drones vigiando os habitantes para só saírem de casa com permissão expressa, e um total de 250 milhões de pessoas em quarentena na China toda.
E que, na cidade de Wuhan, a mortalidade foi de quase 5% (o dobro da gripe espanhola estimada pela OMS) porque o sistema de saúde ficou completamente sobrecarregado, mesmo o governo tendo aberto 1000 leitos de UTI em 10 dias (o que representa ⅕ dos leitos de hospital de UTI de todo o Estado de São Paulo, de novo, o Estado com maior número de leitos do país).
Fica aí a dúvida se é administrável.
“No Brasil é quente, não vai ter vírus aqui”
A verdade é que não sabemos. O vírus da Influenza é o vírus que mais causou pandemias no século passado e é um constante motivo de preocupação. A influenza, de fato, não resiste muito bem em climas quentes e úmidos. Inclusive, no hemisfério norte, a gripe sazonal é um problema muito maior que no hemisfério sul. Porém, em geral, quando ocorrem pandemias de gripe, ela costuma perdurar pela primavera e verão no hemisfério norte.
O coronavírus só causou duas situações preocupantes: a SARS e a MERS. E ambas foram rapidamente controladas porque a SARS só era transmissível depois dos sintomas começarem e a MERS não era transmissível entre humanos. Não temos como saber se o contágio reduz em lugares quentes e úmidos porque o vírus é novo. E a OMS recomenda que todos os países lidem com a possibilidade de que o vírus não irá ser sensível a fatores ambientais.
“Isso é tudo politicagem, estão querendo ganhar dinheiro com essas coisas”
O Mercado está em queda livre e a ameaça de uma pandemia pode gerar uma recessão absurda em todos os setores da economia. Não é bom pra nenhum país.
Aliás, o mundo todo depende muito dos medicamentos que a China produz, além de tantas outras matérias primas. O impacto da falta desses produtos já está sendo sentido no mundo todo. Pandemia não é bom pra ninguém.
Esse post foi só porque eu estou muito cansada de ver gente sem se importar pra algo que pode significar um transtorno muito grande num país como o Brasil. Mas sigo na esperança que essas pessoas estejam certas. Porém, prefiro estar preparada para um cenário ruim e ele não acontecer do que não estar preparada e ele acontecer.
- Ana Luiza Savioli da Silva é formada em Biologia pela Unicamp