Uma mulher de princípios

                         Éden A. Santos

VI

                        – Sasha, vamos limpar os armários e doar as roupas, calçados e tudo que era do Serguei. Seus irmãos não querem nada do que era dele.

            – Já vou mama!

            – Começa pela cômoda. Estão aqui dois sacos plásticos de 100 litros. Acho que devem dar.

            O móvel continha três grandes gavetas e na última parte superior, duas gavetas próprias para guardar objetos pessoais de toda ordem, numa das quais encontrara o celular do irmão.

            – Mama, e esses penduricalhos? Onde ponho?

            – Pegue aqui essa caixa –. Estendendo uma de papelão maior que uma caixa de sapatos –. Coloque tudo dentro.

            Na primeira gaveta superior havia relógios, várias medalhas ganhas em competições esportivas, esparadrapos de diversas dimensões, ataduras “provavelmente, utilizados nas contusões das refregas esportivas que seu irmão amava” pensou Sasha. Havia ainda vidro de linimento e bisnaga de gelol destinadas ao mesmo fim. Tudo recolhido e depositado na caixa de papelão, Sasha passou para a gaveta ao lado da anterior onde havia apenas meias. Jogou-as no saco preto de plástico. Na gaveta inferior estavam as camisetas festivas com mensagens ou gravuras modernas e as camisetas polo, arrumando-as, igualmente, no saco preto. Em seguida passou para a gaveta debaixo onde se encontravam suas cuecas e shorts, que colocou cuidadosamente no mesmo saco. Na última gaveta estavam seus moletons e agasalhos de inverno. Quando Sasha os recolheu, encontrou uma pequena caderneta espiral, com capa preta, enfeitada por flores e folhagens brancas de diversos tipos. Numa targeta adesiva colada diagonalmente na sua capa, estava escrito com a letra de Serguei “CONFIDENCIAL”. Acendeu-se, evidentemente, a curiosidade de Sasha que ocultou da mãe o achado, colocando-o na cintura por baixo da blusa. Terminada a tarefa, não contendo sua ansiedade disse “Mama está limpa a cômoda. O que mais a senhora deseja”? “Mais nada filha. Ajudaste-me muito. Pode deixar o saco aí sobre a cama. Obrigada”. Sasha correu para seu quarto, fechando a porta, sentou-se em sua cama, recostada na cabeceira que era revestida de um acolchoado de algodão cru. Abriu, avidamente, a caderneta. Na primeira página estava escrito em letras maiúsculas como sendo claramente a caligrafia de Serguei “OPERAÇÃO CHAPAREZ” “Chaparez? Que será isso”? Correu ao seu computador e acessou o Google. Em segundos apareceram duas fotos. A primeira era um homem numa enchente com água até praticamente à cintura, atrás de um carro com água quase até a sua metade, sob o título de “Boliwia”. Na foto seguinte apresentava um pequeno povoado praticamente coberto pelas águas. Visualiza-se os telhados de umas casas e as copas das árvores. Indo ao texto, Sasha não compreendeu nada. Não era em português, nem inglês, nem castelhano. Era uma escrita num idioma completamente desconhecido por ela. Havia nela muitos Ws a começar do nome do próprio país a que se referia. Rapidamente Sasha concluiu que Chaparez era uma cidade boliviana e, possivelmente, aquele idioma fosse polonês registrando uma enchente naquela pequena cidade. “Ah! Serguei havia estado na Bolívia e que a placa Herrera Cruz do que parecia ser um estabelecimento por trás daquela foto talvez fosse na tal de Chaparez. Será que é isso mesmo”? Voltou à sua cama com a caderneta nas mãos. Abrindo-a, na página seguinte, estava escrito:

Operação Chaparez

Missão: apagar ‘El Hombre’.

Ações: infiltrar-se em boca de fumo. Enturmar. Conhecer traficantes.

Método: conquistar confiança, conhecer e aproximar-se dos líderes.

Atitude: muita paciência. Não se precipitar. Nunca carregar qualquer arma e não portar qualquer tipo de celular, smartphone e similares.

Homem Chave: Pablo Herrera.

Perfil de PH: jovem de boa aparência, gosta de roupas de grife, sedutor, amigo de filhos de diplomatas, inteligente e rápido em ações e raciocínios, gentil, porém pode tornar-se extremamente violento se provocado ou em situações de perigo. Bastante desconfiado. Tem uma capacidade dissimulável muito grande. Exige muita cautela. É o fio condutor ao “El Hombre”.

El Hombre: pouco conhecido. Sua foto no WhatsApp depois de detidamente gravada na mente, deve ser apagada. Maior produtor e fornecedor da erva. Endereço desconhecido. Sabe-se apenas que vive nas florestas da região de Chaparez e relaciona-se com um pequeno grupo de ajudantes que o protege de qualquer aproximação de estranhos.  Tem alguma coisa ao redor de 40 anos, 1,65m de altura, aparência física como a dos indígenas bolivianos. Traja-se tipicamente como eles: calças de algodão cru, sandálias de couro e ponchos coloridos, debaixo dos quais suspeita-se que porta suas armas. Franzino e culto tem uma conversa calma e sedosa, engana seus interlocutores quando precisa agir. Aí o faz com indisfarçável rapidez, violência e crueldade. Diferente de seus congêneres fez curso superior e é estudioso. Geralmente surpreende. Muito popular, sobretudo porque acode às necessidades de toda população da região.

Cuidados: qualquer descuido no falar ou agir pode ser fatal. Nada de tric-tric (conversa fiada). Ter claramente definida a área de atuação na Rússia nas tratativas, conforme treinamento. O instrumento para alcançar o fim deve ser cia.

            “Cia”? Indagou-se Sasha. “O que seria? Seria a agência de inteligência americana? Não! Não poderia ser! Por que Serguei estaria envolvido com a Cia? Embora tudo que estive lendo já saía da órbita do normal do que ela conhecia do irmão, Cia já era extraordinariamente exagerado. E a referência à Rússia? Vou continuar lendo devo chegar a algum lugar”.

                                                                       VII

            Nas páginas seguintes Sasha encontrou uma porção de agendamentos, aparentemente em muitos encontros com PH, ao fim dos quais há um relato, em forma de diário, do que realmente tratava aquela missão e o papel do irmão, papel esse que ela nunca imaginou ou jamais lhe passou pela cabeça que ele poderia estar envolvido. Uma verdade, ela não fora a confidente que pensara ter sido do irmão. Eis o que ela encontrou,

            “Hoje, 11/01/2011, devo partir para a Bolívia juntamente com PH para, certamente, conhecer “El Hombre”. Finalmente, depois de meses, consegui conquistar a confiança da turma o que vai me permitir chegar ao fazendeiro da rama, como são conhecidos os produtores da cocaína. Normalmente, os cultivadores passam o produto à frente para os secadores e, posteriormente, destes aos prensadores. Com “El Hombre” era diferente. Ele dominava todo o ciclo do produto para distribuição aos traficantes. Não posso mostrar qualquer ansiedade ou hesitação ou ponho tudo a perder. Tenho plena consciência da minha responsabilidade e da expectativa de sucesso que muitas autoridades policiais depositam na minha missão. Afinal, seria um golpe de enorme dimensão para conter o tráfico. Não devo decepcioná-los. Ainda bem que Sasha está em férias e não precisarei dar muitas explicações a ela que se preocupa muito comigo, mesmo porque minha missão é secreta e estou proibido de comentar com qualquer pessoa. E uma despedida dela nessas circunstâncias eu poderia me emocionar, porque não sei se voltarei”. Nesse instante Sasha parou de ler para enxugar algumas lágrimas que começaram a correr por sua face sardenta. Estancando-as voltou à leitura. “O objetivo, em tese, alegado para PH e a turma da Bolívia era o de discutir e estabelecer condições de preço, quantidade e uma rota para carga de erva para a Rússia, via Brasil, onde – tenho que garantir aos meus fornecedores – possuo uma farta rede de distribuição, composta por alguns primos, filhos de irmãos de meu pai. Tudo onda”.

            Sasha começava a entender que seu irmão estava desempenhando um perigoso papel de duplo agente.

            “PH por questões estratégicas me disse que não iríamos de avião para não termos que apresentar documentos, mesmo sendo falsos e nos expormos em aeroportos, onde a fiscalização é muito maior. ‘Nada de registros meu amigo’. A viagem seria por via terrestre e foi, como previsto, cansativa. Ônibus leito de São Paulo a Bauru, feita à noite. Se em avião os bancos são desconfortáveis, imagine-se em ônibus. O passageiro no banco detrás, incomodado, me acordava de tempos em tempos, apoiando-se no encosto do meu banco para se ajeitar. Dormi mal em toda a viagem e sempre em meio a um inconveniente mal cheiro de peidos. Se no claro dificilmente se identifica o autor da flatulência quando se está com três pessoas ou mais, é de se imaginar naquele ambiente escuro com aproximadamente cinquenta pessoas. Buscar autores é missão impossível. Caótico! O mesmo cidadão atrás do meu banco tirou seus sapatos. Imediatamente exalou um forte cheiro de chulé. Um verdadeiro martírio. Certamente, os habitués daquelas viagens deveriam estar acostumados. Eu, um calouro, estava sofrendo. Houve uma parada técnica na qual se esticava as pernas, esvaziava-se a bexiga e bebia-se ou comia-se alguma coisa. Bebi apenas um café. Chegamos ainda escuro na cidade de Bauru. Da rodoviária dirigimo-nos para a estação ferroviária em um táxi.  Aguardamos o trem que deveria partir daí a umas duas horas. O percurso seria de Bauru a Corumbá, no estado do Mato Grosso do Sul. Foi uma verdadeira odisséia. A viagem durou quase cinquenta horas. E algo que eu não esperava, aconteceu. Na estação ferroviária inicial esperava-nos um homem magricela e alto que aparentava uns sessenta anos, mas deveria ter menos. Fora envelhecido indiscutivelmente pela droga. Sua pele macilenta o denunciava. Cumprimentou efusivamente a PH. Quem seria, perguntei-me. Acudindo minha curiosidade PH me apresentou a pessoa. ‘Antenor, disse-me ele, mas pode me tratar de Antena. Muito prazer. PH me falou de você’. ‘Sabe por que Antena? – Indagou-me PH’. Sem esperar por minha resposta emendou, por duas boas razões. Primeira, magricela e alto; segunda, ouve tudo em todos os lugares. Onde está a jabiraca? “Calma! Tem um fininho aí? PH meteu a mão no bolso sacando uma carteira de onde tirou um baseado. Antena, sôfrego, colocou-o entre os lábios e riscando um fósforo, com a mão em concha, o acendeu. Puxou uma profunda tragada e revirou os olhos com um prazer inaudito, murmurando ‘isso é melhor que qualquer donzela’. Olhávamos curiosos aguardando o homem atender à sua profunda carência. Segundos depois, dirigindo-se a PH disse: está no pátio para ser embarcada, se é que já não fizeram isso’. Só aí fiquei sabendo, explicado por PH, que Antena havia roubado um carro que seria moeda de troca por erva, lá na Bolívia. Embarcamos no trem, pouco tempo depois, após adquirirmos o bilhete, que pelo povo, é chamado de passagem. Atravessamos o estado de São Paulo de um extremo a outro, na direção leste oeste. Apesar da locomotiva não ser nenhuma Maria Fumaça – era movida a diesel – a velocidade que estimei não ser mais do que 60 km/h. O número das cidades no estado foi enorme, a partir de Bauru – uma verdadeira metrópole –, fui anotando no meu celular as que eu percebia certa importância: Pirajuí, Cafelândia, Lins, Promissão, Penápolis, Birigui, Araçatuba, Guararapes, Valparaiso, Lavínia, Mirandópolis e Andradina. Depois disso, atravessando o caudaloso rio Paraná numa ponte arcaica, mas demonstrando robustez como era típico de construções antigas. Entramos no estado do Mato Grosso do Sul. Já anoitecia. Era a cidade de Três Lagoas. PH propôs – ou determinou? Não sei bem – pernoitarmos na cidade em busca de um merecido descanso, de um banho e uma boa refeição. Ajustou seu relógio e me recomendou o mesmo: atrasá-lo em uma hora, pela diferença de fuso horário entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. ‘Na Bolívia – disse ele – teremos que atrasar mais uma hora. O fuso entre São Paulo e Cochabamba, por exemplo, é de duas horas’. Pegamos nossa bagagem e procuramos um táxi. Como PH já conhecia a cidade pediu ao taxista nos levar para o Novo Hotel. Disse ele que era um hotel simples, mas limpo e com uma refeição saborosíssima. Quem cozinhava era a própria dona Era de um casal, julgo, de nordestinos. O próprio proprietário nos recepcionou e depois de preenchermos as habituais fichas, fomos encaminhados para um apartamento com duas deliciosas camas – como se mostraram ao deitarmos mais tarde – com lençóis alvos como algodão. Antena ficou num outro quarto. Não havia água quente para tomarmos banho, mas nem precisava. A água que saía pelo chuveiro era morna em razão do forte calor que reinara. A temperatura durante dia, nos informou o proprietário, girara ao redor de 40º, naquele momento não deveria estar menos de 30º. No dia seguinte, após um nem tão simples assim, mas reforçado café matinal, no qual não faltou torresmo e ovos fritos, rumamos para a estação ferroviária para retomarmos nossa viagem”.

(Semanalmente, o Jornal de Itu publica este romance por capítulos. Acompanhe! Para ler os anteriores, clique aqui)

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