Uma mulher de princípios
Éden A. Santos
Segunda Parte
XV
Sasha conseguiu, depois de muita dedicação e de se matar estudando, ser aprovada numa das mais respeitadas faculdades de direito do estado. Foram muitas horas de estudos sempre com a preocupação de poupar a família dos altos custos de cursinhos. Faculdade particular? Nem pensar. Mergulhou nos estudos dos livros e apostilas de preparação para vestibulares, sacrificando cinemas, lazer e amigas, exceto com Marlyze, cuja amizade fez questão de preservar agora, por duas importantes razões: ter sido a namorada de seu irmão (e de certo modo tê-lo presente em seu dia-a-dia) e, como já concluíra, porque pensava ser ela um elo importantíssimo para seus planos profissionais.
No primeiro dia de aula os veteranos preparam o conhecido trote. Todos os bixos, como eles eram alcunhados, foram reunidos no espaço da praça de alimentação do campus. Havia quase uma centena de calouros. O presidente do Centro Acadêmico, quando todos estavam reunidos, subindo a uma mesa, pediu silêncio e sentenciou. “Temos aqui, mais ou menos uns oitenta bichos e igual número de veteranos. Pois bem, vocês conhecem que a dois quarteirões daqui existe a Churrascaria Recanto Alegre. Reservamos um espaço para todos nós, cento e sessenta, talvez cento e oitenta pessoas. Vamos sair daqui e vamos para lá. Quando chegarmos lá temos duas surpresas para vocês.
O presidente do CA era um jovem alto, simpático, de feições atraentes, barba cerrada e palrador, como convém a um futuro advogado. Vestia despojadamente um jeans, camiseta e sapatênis e algo que chamava atenção é que não ostentava nenhuma tatuagem, pelo menos na parte visível de seu corpo. Segundo o que Sasha soube naquele mesmo dia, era descendente de uma família de barões do século XIX, tanto por parte de mãe quanto de pai cujas famílias se desdobraram, nos dias presentes, em industriais e pecuaristas bem-sucedidos.
Ao chegarem a tal churrascaria o grupo puxado por Guilherme – esse era o nome do presidente do CA, dirigiram-se a um canto do enorme estabelecimento, onde estavam alinhadas duas longas fileiras de mesas e respectivas cadeiras. “Bicharada, vocês vão sentar um ao lado outro, deixando o lado oposto, isto é, em frente, vazio para que nos sentemos, nós os veteranos, um em frente a cada um de vocês calouros. Depois dos calouros estarem acomodados foi a vez dos veteranos se instalarem. Tudo era feito debaixo de uma algazarra digna de uma escola de adolescentes. Para surpresa e horror de Sasha na cadeira em frente à sua, sentou-se nada mais, nada menos, que Guilherme. “Como presidente do CA tenho certas prerrogativas, como a de escolher minha caloura ou meu calouro. Desse modo, eu escolhi sentar-me à tua frente”. Desatando uma gostosa gargalhada para aflição de Sasha que tremia dos pés à cabeça. Levantando-se, Guilherme pediu silêncio, batendo palmas. Em segundos, todos os olhares se voltaram para ele. “Como havia prometido vou revelar a primeira surpresa que reservamos aos bichos. Cada calouro vai pagar a sua conta e a do veterano sentado à sua frente. Que tal? Gostaram da surpresa? Bebida e comida à vontade, por conta de vocês, bicharada com nossa saudação de serem bem-vindos”. Os veteranos não só aplaudiram como assobiaram estridentemente. Os calouros, alguns com sorrisos amarelos, outros com semblantes preocupados, permaneceram calados. Havia uma meia dúzia de garçons plantados estrategicamente ao longo das mesas que não contiveram um maldoso sorriso. Sentando-se, Guilherme dirigiu-se à Sasha “Meu nome é Guilherme. E o seu”? “Sasha”, respondeu quase tartamudeando. “Você gosta de whisky? Eles têm aqui um whisky scotch blended,12 anos, de sabor inigualável. E a carta de vinhos? Humm! Franceses e italianos insuperáveis”. Juntando três dedos os levou aos lábios em forma de bico num gesto comum de se dizer supimpa. Sasha, apavorada disse, atropelando as próprias palavras. “Guilherme, não gosto de whisky, muito menos de vinhos e se você quiser saber, estou sem fome”. Guilherme era uma pessoa não só de bom humor, como de sorriso e gargalhadas fáceis. Foi o que soltou ao ver toda apreensão de Sasha. Em sua casa – pensou Sasha – havia bom humor, mas aquele ambiente era de muita descontração, sobretudo dos veteranos. E Guilherme deleitava-se ao deixá-la inibida. Havia duas boas razões para ela se sentir desse modo. Primeira, a ter sido escolhida a dedo pelo líder daquela aparente confraternização para ser sua companheira no almoço. A segunda e mais importante razão era o fato de não ter dinheiro suficiente para pagar as despesas que prenunciavam, se Guilherme levasse a cabo a intenção de beber o que citara, afora a comida dele e dela. “Caramba! Que situação embaraçosa. Ela possuía seu cartão de crédito, mas não sabia sequer se ele já não estava no seu limite, já que a ela fora aquinhoado como um presente do seu pai que arcava com as despesas. Mas, evidentemente, havia limitações. “Ficou preocupada Sasha? Você não viu nada. Quando vier o cardápio teremos a alternativa de churrasco ou pratos da cozinha internacional. Camarões, frutos do mar e uma lagosta, extraordinários”. “Olha, Guilherme, vou te confessar que não vim preparada para uma surpresa dessas. Peço a você compreensão e limitemo-nos a um prato simples. O que você acha”? Encorajou-se. Guilherme voltou a gargalhar. Sasha olhou ao derredor, de um lado e de outro e novamente pediu compreensão. Guilherme levantou-se e, novamente pedindo silêncio, perguntou aos veteranos “E aí, como estão seus parceiros? Assustados”? Um gaiato gritou “O meu até se cagou”! Todos caíram numa ruidosa gargalhada, até mesmo os apavorados calouros. “A segunda surpresa que reservamos para vocês é que o susto foi apenas um teste cardíaco. Pelo visto todos estão bem com seus corações. Feito o teste queremos informar que a segunda surpresa é que o almoço será pago pelo Centro Acadêmico. Essa é uma forma de dar a vocês, colegas calouros, uma recepção que contraria toda a tradição das humilhações absurdas do passado. Cada um pagará apenas o que tomar de bebida alcoólica, a água é gratuita, bônus da casa. E na comida, como o CA é que pagará, moderem-se” – Concluiu jocosamente. O aplauso foi ensurdecedor. Sorrindo, Guilherme sentou-se e fitando Sasha, indagou “Tudo bem”? “Sim! E aliviada”. Também sorrindo. “Seu nome é de origem russa, não? Você é descendente de russos”? “Sim! Meus pais, mas nascemos todos no Brasil”. “Nós”? “Sim eu e meus irmãos”! “São muitos”? “Sim, seis. Comigo sete. Sou a única mulher da prole”. “Com essa beleza toda eles devem ter muito ciúme de você, não”? “Já tiveram mais”. “Você tem mais gente na família estudando direito”? “Não, só eu. Como bons russos que somos, a maioria optou pela engenharia”. “E você já decidiu o que fará depois de formada”? “Quero ser policial”. “Policial? Você vai fazer cinco anos de direito numa universidade do nosso nível, para ser policial”? “Por quê? Tem preconceito”? “Não! Não! É que imaginei que talvez fosse escolher a magistratura, ministério público ou atuar numa banca”. “Um dia te conto porque dessa minha opção”. “Pode ter certeza que estou muito curioso”.
XVI
Os dias se passaram e as aulas começaram. Sasha notava um interesse particular de Guilherme por ela. Não era, a sensibilidade feminina lhe intuía, uma curiosidade, uma simpatia ou o desejo de lhe dar uma acolhida como colega veterano. Ele estava a fim dela. Por essa razão a prudência era recomendável porque, afinal, um cara como ele, líder estudantil admirado e respeitado por seus colegas, bonito e inteligente, deveria ter uma legião de admiradoras em busca da sua afeição. Até que um dia, sábado, Guilherme ligou para Sasha.
– Sasha, preciso falar com você. Estou com um sério problema pessoal. Preciso de uma opinião de pessoa sensata. E acho que você pode me ajudar. Podemos nos ver hoje?
– Guilherme, temos hoje, em casa, à noite, uma confraternização de famílias da colônia e meu pai faz muita questão que todos nós estejamos presentes. Hoje não dá.
– E amanhã?
– Tudo bem, só que antes ou depois do almoço. Nossa família não abre mão de almoçarmos juntos.
– Você não pode quebrar essa tradição e almoçar comigo?
– Hum!
– Peço humildemente!
– Tudo bem! Vou ter que achar uma boa razão para explicar para meu pai. O almoço com ele ser preterido pela única filha, tem um valor incomensurável.
Não precisava de um sexto sentido para deduzir porque era previsível, concluiu Sasha, que alguma novidade estava por vir. Desligando o telefone Sasha imediatamente foi procurar o velho Mikhail. Ele estava sentado à frente da televisão assistindo a uma partida de futebol. Aproximando-se do pai, sentou-se numa das suas pernas e enlaçou seu pescoço com o braço esquerdo. “O que você deseja printsessa”? Sasha sabia agradar ao pai quando queria pedir-lhe alguma coisa e ele também sabia quando o caso era esse. “Pai, um amigo da universidade me convidou para almoçar amanhã. Você permitiria”? Olhando fixamente para a filha indagou “Seu namorado”? “Não pai, simplesmente um amigo. Ele é presidente do Centro Acadêmico e haverá uma confraternização com toda a diretoria e alguns alunos calouros, sorteados por eles”. Mentiu, como nunca fizera antes. “E eles não podem vir almoçar conosco”? “Não papa! São muitos”. “Falou com sua mama“?“Não papai, vim falar primeiro com o senhor”. Sasha conhecia bem seu pai. “Muito bem se ela concordar, você tem minha permissão. Era o que Sasha sabia que ia acontecer. Sua mãe era mais que uma mãe, era uma amiga. De modo que logo depois de conversar com ela que perguntou “É um futuro namorado”. “Não sei mama. Talvez!” Em seguida, telefonando confirmou com Guilherme o encontro.
– Vou apanhá-la a que horas?
– Não! Vou de ônibus. Dê-me o endereço e o horário –. Sasha procurou estabelecer logo de início as suas condições.
(Semanalmente, o Jornal de Itu publica este romance por capítulos. Acompanhe! Para ler os anteriores, clique aqui)